Brasil

"Chorei por 5 minutos, mas tive que levantar", diz enfermeira de foto com paciente morto

O idoso morreu, vítima de uma parada respiratória

Por UOL 22/03/2021 10h10 - Atualizado em 22/03/2021 10h10
'Chorei por 5 minutos, mas tive que levantar', diz enfermeira de foto com paciente morto
A enfermeira Polyana ao lado de paciente que foi atendido no chão por falta de leito. A tragédia mostrada na foto viralizou nas redes sociais - Foto: Reprodução/Redes Sociais

Na última quarta-feira (17), uma foto em que a enfermeira Polyena Silveira aparece sentada no chão ao lado de um paciente numa UPA (Unidade de Pronto Atendimento) de Teresina, foi vista pelo Brasil inteiro. A imagem foi registrada minutos depois que o homem idoso morreu, vítima de uma parada respiratória, apesar dos esforços da equipe médica para reanimá-lo no chão mesmo, por falta de leitos disponíveis.

A Universa, Polyena, que é técnica de enfermagem há oito anos, conta que o atendimento foi exaustivo física e mentalmente, e que passou alguns minutos chorando, sentada no chão, ao lado do corpo. Ela diz, também, que vírus "está muito mais agressivo que há um ano", lamenta a perda de amigos de profissão e relata: "No trabalho, fico firme. Quando chego em casa, eu desabo".

"Em oito anos de profissão, nunca vi uma cena dessas" 

Na Sala Vermelha, a sala de estabilização da UPA, somos em três profissionais de saúde, um médico e duas técnicas de enfermagem. Na última quarta-feira (17), nós estávamos com o setor lotado: seis pacientes gravíssimos e quatro pacientes graves. Não tínhamos leitos, não tínhamos maca, porque todas estavam ocupadas por pacientes aguardando atendimento ou vaga no setor exclusivo para a covid-19.

"Horas antes, a gente estava comentando que estava muito complicado, que não tinha mais vaga, e pensando: "Se aparecer uma emergência, como é que vai ser?". E assim aconteceu.

O paciente [o idoso que aparece na foto] entrou a sala carregado nos braços de um terceiro, que a gente não sabe se era um familiar ou um vizinho, porque deixou o homem lá e saiu. Ele estava em parada respiratória — neste momento, toda a equipe foi ao chão para tentar reanimá-lo. Passamos em torno de 25 minutos tentando, mas não conseguimos.

Esse foi um atendimento que nos deixou exaustos porque foi cansativo, realmente, a posição no chão era muito ruim, desconfortável. Cheguei a comentar com a equipe que meu braço estava tremendo, e me mantive firme até o fim, porque esse é o meu trabalho.

Mas o que nos deixou cansados mesmo foi o psicológico, que ficou muito abalado depois daquela cena. Era muita decepção, mas a gente fez o que podia.

Em oito anos de profissão, eu nunca tinha visto uma situação dessas: ter que cuidar de um paciente no chão porque simplesmente não tem onde colocar. Inúmeras vezes eu participei de intubação de paciente, de reanimação cardiopulmonar, mas daquele jeito, realmente, foi a primeira vez.

Quando essa foto chegou para mim, lembrei exatamente o que eu estava pensando na hora. Eu estava fisicamente cansada, claro, olhando para todos aqueles pacientes que estavam ali intubados, esperando transferência, e imaginei se fosse a minha mãe, meu marido, ou um dos meus filhos. O que eu ia fazer? Como eu ia me sentir sem conseguir trazer eles de volta?.

"Fiquei sentada ali uns 5 minutos. Chorei, mas tive que levantar, lavar o rosto e continuar o atendimento, porque lá ainda estavam os outros dez pacientes que precisavam da gente".

"O vírus está muito mais agressivo"

Em comparação com março passado, a situação hoje é muito mais assustadora. Está bem pior. A gente sabe que é o mesmo vírus, a mesma patologia, só que está diferente, muito mais agressivo. Ano passado, os números eram altos, mas tínhamos mais unidades de atendimento. Agora, com os hospitais de campanha fechados, as unidades estão muito sobrecarregadas.

À medida que aumenta o número de pacientes, diminui o número de equipamentos que a UPA tem à disposição — monitor, respirador, maca. Não é fácil trabalhar sem equipamento disponível. Você fica ali rezando: "Meu Deus tomara que esse paciente não se agrave, tomara que dê tudo certo aqui". Estamos trabalhando com o que temos e como podemos. Quando sai um paciente de alta ou transferência, rapidinho a gente higieniza o leito e entra outra pessoa que está precisando.

A equipe médica — enfermeiros, médicos, diretores de hospital — não tem como resolver a falta de equipamentos, isso está acima da gente. Não dá pra ir na loja da esquina comprar um ventilador. Essas são coisas que precisam ser resolvidas nas esferas municipal, estadual e federal.

"No meu plantão de sábado (21) tinha quatro pacientes graves precisando de ventilador, mas não tinha quatro ventiladores. Não é que a gente escolha quem vai viver e quem vai morrer, mas a equipe médica precisa avaliar se em alguns casos dá pra fazer outra manobra, aumentar a dose de medicamento, e assim tentar salvar todo mundo".

Graças a Deus, até ontem eu não tive um plantão de dizer 'é esse ou aquele, vamos ter que escolher'. Tenho fé que não vai acontecer, que antes de chegar a esse ponto as coisas vão se ajeitar. Essa é a minha esperança.

"Tenho esperança em dias melhores" 

No ano passado, entre agosto e outubro, teve um pico de profissionais de saúde infectados. Colegas de trabalho. Foi o momento em que eu fiquei mais aflita, porque senti a doença chegando ainda mais perto. Perdi muita gente querida, amigos daqui do hospital. 

Mas agora, nesses dias, tenho estado com o emocional mais abalado. 

Estou indo trabalhar muito assustada, com medo pela minha família, pelos pacientes que eu vou cuidar, por não saber como vão ser as minhas 24 horas de plantão, se vou perder paciente.

Já escutei gente dizer que profissional de saúde não tem sentimento, não tem coração. Isso não existe. O profissional de saúde sofre. Eu tento ser forte porque meu trabalho exige isso. Já imaginou um paciente aflito, com medo, e eu deixando transparecer minha incerteza, minha tristeza? Jamais. 

Meu trabalho exige sim um psicológico firme e forte, mas, para ser sincera, quando chego em casa eu desabo. Mas tenho uma família que ora por mim, me dá força.

Sou mãe de três filhos: Nicolas, Nádison e Naílson. Meu marido diz: 'Não fica assim, você vai adoecer', tenta me convencer a sair, dar uma volta na rua com as crianças. É difícil, tento evitar, mas eles absorvem meu sofrimento. Quando digo que tento ser forte, é também para não fazer com que eles sofram. 

Eu tenho esperança em dias melhores. Tenho esperança que, com a vacina, a gente reduza o número de quadros graves no Brasil. Também tenho esperança que a sociedade vai parar e entender que juntos somos bem mais fortes do que aqueles que poderiam resolver essa situação e não estão resolvendo.

Ninguém é inocente ao ponto de não entender que os nossos governantes têm a maior parcela de culpa no que está acontecendo, mas também é por nossa conta, a gente precisa evitar a transmissão desse vírus".

Outro lado 

O UOL procurou a Fundação de Saúde de Teresina, responsável pela UPA de Promorar, que serve como triagem, recebendo pacientes de covid-19, mas não é exclusiva para a doença. Em nota, o órgão informou que o paciente já chegou à unidade em estado grave. 

A Fundação acrescentou que a equipe de plantão deu início ao processo de reanimação enquanto uma maca era providenciada. No entanto, continuou o órgão, devido à gravidade da situação, não foi possível interromper o processo para mudá-lo de local.

Confira a nota completa:

A Upa do Promorar informa que o paciente em questão foi trazido para a sala vermelha nos braços por um familiar já em estado grave de parada cardiorrespiratória, e foi recebido por uma equipe de plantão que iniciou imediatamente o processo de reanimação enquanto era providenciada uma maca, pois todos os leitos da sala estavam ocupados inclusive leitos extras. Devido à gravidade da situação não era possível interromper o processo de ressuscitação cardíaca para mudá-lo de local. Foram usados todos os recursos possíveis para reanimação do paciente, no entanto ele já chegou à unidade em estado muito grave e veio a óbito.