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Privatizar os Correios é leiloar uma parte da cidadania dos mais pobres

Pode até soar banal, mas o endereço é uma pauta de luta e esperança de milhares de brasileiros até hoje

Por Carta Capital 10/10/2019 09h09
Privatizar os Correios é leiloar uma parte da cidadania dos mais pobres
Privatizar os Correios é leiloar uma parte da cidadania dos mais pobres - Foto: Reprodução

A proposta de privatização da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), popularmente conhecida como Correios, impactará aquilo que é o alicerce mais elementar da vida e dos sonhos da grande maioria das famílias brasileiras: sua casa. A dúvida talvez venha à mente daqueles que começam a ler este modesto texto. Como assim? Qual a relação entre a logística postal, com suas atividades de recepção, movimentação e entrega de correspondências e encomendas, e a minha casa?

Por certo o debate acerca do encarecimento das tarifas relacionadas à logística postal está na ordem do dia, bem como as dificuldades já enfrentadas pelas regiões mais isoladas do país – onde os custos de entrega são superiores aos preços hoje praticados pelos Correios –, e que são uma afronta direta à lógica pura de busca por lucros que qualquer empresa privada tem como meta. Mas, como os leitores já devem ter concluído, tais aspectos que envolvem a questão da privatização dos Correios, além de já bem abordados, dizem respeito mais aos indivíduos e a seus direitos mais básicos como cidadãos do que às casas das famílias.

Mesmo que também haja questões de balizamento argumentativo para ser contrário à privatização dos Correios – uma vez que, sim, os preços praticados pelos Correios são os mais acessíveis hoje para entrega de correspondências e encomendas de pequeno e médio portes, tendendo a aumentar consideravelmente com a privatização; e sim, as partes mais remotas do país tendem a se isolar ainda mais com a introdução de uma lógica mais de busca de lucros de capital que de comunicação e integração do território nacional – o que trago aqui realmente tem tudo a ver com a casa e, na minha opinião, as cidades brasileiras. Trata-se do Código de Endereçamento Postal, o que conhecemos por sua sigla: o CEP.

Criado em 1971 – poucos anos após a criação da própria empresa em 1969, que deu lugar ao Departamento dos Correios e Telégrafos, então autarquia do Ministério das Comunicações – o CEP veio substituir as zonas postais, que nem eram de conhecimento da população. O sistema surgiu com 5 dígitos que indicam a região, o Estado, o Município e o distrito. Em 1992 foi-lhe acrescido mais três dígitos, detalhando, desse modo, a localização de tal maneira a identificar bairros, logradouros e grandes receptores de correspondências. Ou seja, o CEP nada mais é que um sistema de localização. Mas tal aparente simplicidade tem um valor inestimável para centenas de famílias, quando estas têm regularizadas suas moradias. Atuando no então Ministério das Cidades, quantas vezes não ouvi algo semelhante a: “Agora tenho meu endereço! Um CEP para indicar onde moro no meu trabalho, na escola dos meus filhos, na loja onde, agora, posso fazer meu crediário…”

Pode até soar banal, mas o endereço é uma pauta de luta e esperança de milhares de brasileiros até hoje. E o CEP desempenha um papel muito importante nesse processo, pois é um indicativo muito significativo de regularidade da moradia, mesmo que, na verdade, esse código diga respeito à regularidade do logradouro (rua, avenida, travessa, quadra, entre outros) junto ao Poder Municipal, uma vez que os Correios só o atribuem a logradouros reconhecidos oficialmente, ou seja, nomeados por lei municipal. Mais que regularidade da moradia, o CEP está estreitamente ligado ao exercício da cidadania, já que normalmente é solicitado juntamente com um documento de identidade para quase tudo no Brasil.

E acreditem, o trabalho de atribuição de CEP a logradouros está longe de terminar. Segundo informações dos próprios Correios, desde a adoção do sistema em 1971, somente 397 dos 5570 Municípios brasileiros (contando Brasília, Distrito Federal) possuem CEP por logradouros, pouco mais de 7% do total. Mesmo que esse percentual tão ínfimo de municípios concentre 58% da população brasileira (Censo 2010), dá para ter uma ideia de quanto trabalho de codificação de logradouros ainda há pela frente.

Mesmo com todo esse trabalho, o CEP é uma valiosa fonte de renda para os Correios, que vende sua base de codificação, reunida no Diretório Nacional de Endereçamento, por valores que vão de R$ 1.100,00 a R$ 2.500,00 com opção de renovação após um ano que varia de R$ 220,00 a R$ 2.100,00 a depender do prazo e do nível de detalhamento da base. Não foi possível localizar informações sobre a renda dos Correios com a comercialização dessas informações. Contudo, considerando os valores praticados e a necessidade de tal base de informação para muitas empresas, é possível imaginar que é uma boa fonte de recursos.

Se uma empresa pública é capaz de comercializar uma base de dados que na opinião de muitos deveria ser gratuita, imagina então isso nas mãos da iniciativa privada?

Um ativo, sem sombra de dúvida, muito valioso. Porém, parte daquilo que compõem a cidadania no país. Um patrimônio que não deve ser entregue à propriedade de poucos, mas que deve continuar a ser público.

 

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